Análise FOFA do Estatuto, a “Constituição” da Medicina Dentária portuguesa

February 13, 2024

Durante os 23 anos em que exerci funções eleitas ao nível sócio profissional tive ocasião de passar por três revisões estatutárias na Assembleia da República, instituição com competência exclusiva para o efeito. Duas dessas revisões foram por mim lideradas.

Posso afirmar que são processos complexos, demorados, que exigem acompanhamento de perto e grande capacidade negocial e articulação entre os diversos envolvidos. É salutar que tenham surgido opiniões diversificadas dos membros dos órgãos sociais da nossa ordem, e médicos dentistas de uma forma geral sobre o processo de alteração estatutária.

A profissão bem precisa de opinião publicada, de participação sócio profissional, de massa crítica que ajude a aperceber os caminhos que temos pela frente, as prioridades que temos de elencar e as opções a tomar.

Assim, num momento em que foi aprovada a 12 de dezembro último a Lei nº 73/2023, o Estatuto da OMD, a “Constituição” pela qual se orienta a profissão transmito por esta via as minhas primeiras impressões, num formato SWOT, ou na sigla portuguesa FOFA (Forças, Oportunidades, Fraquezas e Ameaças).

Forças

Antes do mais, realço que a regulação de uma ordem profissional de há muito deixou de ser um assunto dos seus dirigentes para se constituir em matéria de interesse para os médicos dentistas no seu global, e sobretudo para a sociedade no seu todo. Em particular para os destinatários dos serviços, os clientes, os doentes, outros profissionais de saúde.

É a designada regulação social da profissão, ou seja, uma regulação orientada para criar Valor na sociedade em geral e não exclusivamente para a própria ordem ou para os profissionais nela inscritos.

Desenganem-se, portanto, aqueles que pensam que os assuntos da profissão são reserva exclusiva dos médicos dentistas. A grande Força do nosso estatuto, consiste nas disposições aprovadas de abertura à participação cívica de personalidades que com a sua experiência e conhecimento, podem ajudar a profissão e a sociedade a refletir sobre os grandes desafios que temos pela frente, a Regulação, a Bioética, a Inteligência Artificial (IA) a Saúde Oral como Direito Humano Universal e o acesso à Medicina Dentária, de entre outras vertentes impactantes.

Oportunidades

A linguagem do legislador é frequentemente indecifrável, até para aqueles mais habituados na sua interpretação. Mesmo os juristas dividem-se frequentemente na interpretação dos conteúdos de normas e de disposições legais.

Como tal a tarefa de explicar e interpretar o estatuto e tudo aquilo que a curto, médio e longo prazo resultará é da maior relevância. A OMD tem assim desde logo a Oportunidade de proceder a uma explicação em linguagem compreensível para o médico dentista e para o leigo, do novo estatuto e em particular das novas disposições agora alteradas ou introduzidas.

  • E que mais Oportunidades nos transmite o novo estatuto?
  • A participação de personalidades de prestígio não inscritas na Ordem no Conselho Deontológico e de Disciplina;
  • no Conselho de Supervisão;
  • e na Provedoria dos Destinatários dos Serviços.

Esta participação, com certeza que trará futuramente à Ordem uma visão mais distanciada, mais de encontro ao sentir da sociedade civil.

A título de exemplo, a questão central do tratamento das queixas de má prática e a perceção que existe na sociedade que as ordens protegem de forma indevida os seus membros, é um problema clássico que poderá ser mitigado desta forma.

O desafio da OMD é o de nomear e fazer eleger em 2024 as personalidades que detenham a experiência e o saber capaz de ajudar a situar a OMD como uma instituição que responde com mais qualidade às reclamações e queixas da sociedade e dos médicos dentistas entre si.

Mantém-se a prerrogativa da Ordem definir parâmetros de qualidade, standards e guidelines no exercício da profissão.

Com a adoção de boas práticas e de normas de orientação clínicas (NOCs) a Ordem estará em posição de definir e afirmar o conceito de qualidade e as boas práticas em consonância e a todos exigíveis.

Também na regulamentação das Competências Setoriais, que está em curso, a OMD tem uma Oportunidade. As competências, formações com duração encurtada, cerca de 100 horas, destinam-se a reconhecer saberes específicos contribuindo para alargar o leque de atuação, abrindo horizontes à Medicina Dentária.

Fraquezas

A criação de especialidades passa a ter um processo diferente, uma tramitação mais burocrática que no anterior estatuto, envolvendo o novo Conselho de Supervisão bem como homologação expressa da tutela governamental (Ministério da Saúde).

É fundamental continuar o processo de implementação das especialidades previstas no anterior estatuto.

A inscrição de pessoas coletivas, sociedades do regime geral, continua a não ser obrigatória, tal como no anterior estatuto.

Nada de novo, portanto, o que implica que, tal como acontece hoje em dia, as regras deontológicas não sejam aplicáveis para as sociedades de prestação de serviços de Medicina Dentária, a não ser que se opte por criar sociedades previstas na lei, denominadas sociedades profissionais ou sociedades multidisciplinares.

Não será plausível que, sem regime de obrigatoriedade, se vão criar sociedades específicas só para efeito de inscrição na ordem com sujeição ao código deontológico dos seus integrantes não médicos dentistas, a não ser que a Ordem crie mecanismos de atratividade para o efeito. Não será fácil.

Ameaças

A grande ameaça que a Ordem tem, em jeito de conclusão, é a de deixar tudo como está. É a de se fechar sobre si mesma. É a de não mobilizar o melhor que existe na profissão. É a de não aproveitar a dinâmica de uma nova “Constituição” para se refundar abraçando os tempos da modernidade e os desafios do digital.

O caminho a seguir exige muita atenção nas grandes questões referentes da Transição Digital em curso, da Demografia, do Direito à Privacidade, na abordagem da Sustentabilidade Ambiental.

A privacidade, por exemplo, é ameaçada por práticas como a publicidade comportamental online, que usa a IA para adaptar anúncios a consumidores particulares, microtargeting, em contextos específicos. Isso cria desejos psicológicos que se disfarçam de escolhas cognitivas.

Compete-nos a todos assegurarmo-nos que cumprimos a nova Lei, o estatuto, sem populismos, sem sindicalismos e interferências indevidas na atividade económica e concorrencial dos membros da ordem. Só assim seremos respeitados e continuaremos a deter o privilégio de nos auto regularmos como profissão.

Este artigo foi publicado originalmente na Revista Maxillaris nº 133, de janeiro/fevereiro de 2024. Consulte a edição eletrónica da publicação.

Este artigo também está disponível em formato pdf.