Sou profissional liberal e não sabia?

Após acerca de seis minutos de leitura estou convicto que os médicos dentistas e profissionais liberais estarão mais capazes de responder ao título deste artigo.

O que é hoje em dia um profissional liberal?

A descrição que adotamos na Associação Nacional dos Profissionais Liberais (ANPL) é o de profissionais “detentores de qualificações de natureza intelectual, incluindo aquelas de índole artística e cultural, promovendo a sua responsabilidade, autonomia e independência no superior interesse dos consumidores e da comunidade em geral”. É uma definição focada, mas também abrangente para acomodar no seu seio, não apenas as clássicas profissões liberais, auto reguladas pelas respetivas ordens profissionais e ainda outras regulamentadas diretamente pelo Estado português ou por algumas instituições associativas.

Quais são os valores comuns aos profissionais liberais?

No fundamental a qualificação, a autonomia, a independência, a confidencialidade, a manifestação do conflito de interesses, de entre outros valores fundamentais, que distinguem e projetam o profissional liberal. Qualificação e capacidade de risco balizados por princípios éticos e deontológicos, capazes de se estruturarem e autorregularem.

Que tipo de profissional liberal sou?

Existem aqueles que trabalham a solo. O freelancer como se designa nalguns países; para dar alguns exemplos, um advogado, um contabilista, um designer, um consultor um instrutor, um coacher, um agente ou corretor de seguros, um mediador imobiliário. Temos profissionais liberais que lideram ou integram equipas, num consultório de saúde oral, por exemplo, um médico dentista, um higienista oral. Temos um perfil mais empreendedor de profissionais em sociedades unipessoais, por quotas ou com outros profissionais que exercem com equipas de maior dimensão e muitas vezes empregam dezenas de profissionais liberais. Temos profissionais liberais com perfil empreendedor, empresários se se preferir. Há ainda quem trabalhe por conta de outros, até com contratos clássicos, não deixando de deter as responsabilidades e autonomia que nos são inerentes. E temos até quem seja profissional liberal e tenha também atividades cumulativas que não estão relacionadas. Portanto, o mundo das profissões liberais é fragmentado, heterogéneo, complexo e necessita de ser decomposto, estudado e analisado.

Muitos acham que os profissionais liberais são uma elite de privilegiados…

Nada mais falso. Reparemos na desproteção na maternidade, na paternalidade, na completa ausência de horários de trabalho. Temos horários de começar a trabalhar, mas não de saída. Trabalhamos, a maior parte de nós 11 meses, se quisermos 1 mês de férias temos que as pagar. Mas as contas para pagar são a 12 e até a 14 meses. As clientelas não nos pagam as férias.. As despesas de um gabinete, de um consultório de um escritório continuam a correr ao final do mês. Um profissional liberal para ter baixa por doença precisa de estar internado 10 dias. O fator risco de acidente de trabalho, de doença, de erro e consequente penalização reputacional, de afirmação no mercado de trabalho e também no declínio profissional nalgumas atividades, são fatores que nos afetam muito. Quanto ao elitismo, os profissionais liberais não querem ser tratados de forma melhor ou pior; apenas de forma diferente, pois diferente é a nossa vida profissional. Os profissionais liberais afirmam-se pelo seu mérito, pelo seu bom nome e estão permanentemente a ser avaliados… pelos destinatários dos seus serviços que constituem a avaliação mais exigente.

Ser profissional liberal é estar, em muitas situações e ocasiões, sozinho. O risco profissional e pessoal recai sobre uma pessoa chave.

De que falamos em termos de ética profissional?

Refiro-me aos códigos de ética profissional, das profissões autorreguladas e regulamentadas. Da vigilância e avaliação dos pares. A ética intrínseca ao exercício de todas as profissões liberais. A ética ao lidar com a assimetria de informação que os profissionais liberais qualificados detêm na prestação dos seus serviços. Embora o acesso à informação digital tenha diminuído em grande parte este fosso da assimetria de informação entre o profissional liberal e os seus clientes ou doentes, a interpretação da informação continua a ser fundamental.

E qual o papel das organizações em termos de ética profissional?

As organizações têm um caminho a percorrer. Não apenas em termos de governança, de inclusão, de sustentabilidade, nomeadamente económica e ambiental, de manifestação de conflitos de interesse, mas também de levar em linha de conta a ética das profissões.

O cidadão tem o direito de saber que as organizações e empresas, públicas ou privadas ou do setor social onde os profissionais liberais prestam serviços ou onde exercem, cumprem com os códigos de conduta ou corporate, mas também de ética profissional. Vejamos um exemplo: a proteção de dados dos clientes ou doentes.

De que serve o compromisso do profissional liberal quando, por exemplo nos Serviços Nacional de Saúde, os dados dos pacientes sofrem uma devassa contínua?

Recorde-se que as ordens profissionais, que por delegação do Estado português regulam alguns importantes aspetos relativos a cada uma das profissões nelas representadas, deparam-se com limitações impostas por legislação diversa, nacional e europeia no que respeita à abordagem de importantes vertentes que afetam os seus profissionais: em particular o impedimento de exercerem ou participarem em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros. Por outro lado, na sua essência, os sindicatos que poderiam cobrir algumas áreas indicadas não incorporam o conceito de profissão liberal, e essa omissão contribui também para deixar sem voz variadas centenas de milhares de profissionais liberais.

Ora, uma parte importante dos desafios e problemas que afetam os profissionais liberais são precisamente relacionados com atividades de natureza laboral e com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros, por exemplo, modalidades de contratação, questões salariais ou de honorários.

Assim como o são também questões essenciais como a garantia de equidade na fiscalidade aplicada, em particular aos profissionais liberais que exercem a sua atividade de forma independente; na proteção social, no desemprego e subemprego, no apoio à parentalidade, ao nível da reforma e de outras pensões e no acesso à formação contínua.

Um profissional liberal não deixa de o ser por trabalhar por conta de outrem e ter um contrato de trabalho clássico.

Um médico não deixa de ter a sua autonomia técnica, a sua independência a sua ética por estar inserido no Serviço Nacional de Saúde. Os valores de um profissional liberal e as suas traves mestras mantém-se, independentemente da relação laboral.

O médico dentista inscrito na sua Ordem é, sem dúvida, um profissional liberal.

Este artigo foi publicado originalmente na Revista Maxillaris nº 134, de março/abril de 2024. Consulte a edição eletrónica da publicação.

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